domingo, 29 de abril de 2007

Só (e é só)


Retalhos do livro "Memórias de uma velha maluca"

Continuemos então a história de Memórias de uma velha maluca. Este trecho passa-se depois da traição entre Mário e Isabel. Passam-se uns anos (e saltam-se uns capitulos) e Helena casa-se. Recordo que quem conta a história é a velha, que, aos julgares de muitos, é maluca. Encontra-se fechada numa clinica psiquiatrica.


Naqueles tempos, Isabel nunca esteve apaixonada. Quem disser que, naqueles tempos, Isabel se apaixonou está de olhos vendados para o seu íntimo. Temos de saber amar-nos para saber amar o próximo. Pode-se julgar, ignorante e precipitadamente, que ela só se amava e a mais ninguém. Mas temos que nos inteirar mais além: ela não conseguia amar ninguém porque a sua alma era consumida por uma raiva que intumescia e acabava por sufocar todos os outros sentimentos. Ela não sabia, porque não conhecia a verdade do seu ser, mas a raiva que cuspia nas poucas palavras que proferia não eram dirigidas à sua irmã, mas para si mesma, por não ter conseguido arrebatar os ânimos daquele homem. Revelo-vos já, porque não consigo controlar a minha voz: Isabel, em eras mais avançadas, enquanto procurava a felicidade olhou para o seu âmago e quando deu por si estava apaixonada. Apaixonada!, mas não por Mário.

4. Nas vésperas do casamento de Helena

Helena fora traída, ouvira ela da boca da cúmplice da traição. Não suportava. De facto, não suportava tamanho indicio da infelicidade dos seus restantes dias partilhados com um homem que cedera tão facilmente à tentação. Ela acreditava que era mais do que a possibilidade de ser o início de muitas traições mas o presságio oferecido pelo destino, como aceno de sua amizade. Largara-o à desventura. Mas ele só ficou entregue àquela sorte funesta, na agonia do abandono nos primeiros dias, porque ele acabaria por se afundar numa paixão arrebatadora por Isabel.

Helena acreditava que um amor entrega-se ao esquecimento quando a memória está preenchida pela feição de outro homem, trazendo os sentidos renascidos. Procurou e encontrou. Estava noiva de Fernando. Guardo como recordação as suas palavras que proferiu a uma sua amiga, nas vésperas do casamento. Palavras de indignação porque Mário inicialmente telefonava a pedir desculpas e depois deixou de dizer o que quer que fosse. O silêncio dele era sinónimo de esquecimento. A amiga ripostou: ... mas tu vais-te casar com outro. Já não o esqueceste?! Disseste-me que já não gostavas dele; que estavas perdidamente perdida de amores pelo Fernando. Querias que ele continuasse atrás de ti, para quê? Para insuflar o teu ego? Para quê? Seguiste a tua vida e ele a dele. Tu sabes que não serias jamais feliz com ele. Deixaste-o como prenda para quem o aceitasse e quem o fez foi a tua irmã. Isabel respondeu com a voz arrastada, contendo o choro: mas foi por ela que eu o deixei. E, com ela ele ficou. Ohh pá! Não! É que não se pode confiar na palavra amor soletrada por um homem que nos agarra e geme aos nossos ouvidos. Porque é apenas uma palavra. Porque haveria de ser sentida? Sentia orgasmos, mas não sentia o que dizia. Rapidamente esqueceu-me. Grande amor o dele! Fez-se um breve silêncio. Tu também o amaste e não vais casar com outro? Querias que o amor dele por ti fosse duradoiro? Ele para encontrar a felicidade teve de a procurar onde o deixaram entrar. Ele quis voltar para ti e tu recusaste. Então, ele entrou na vida de Isabel. Helena com facies irada esbravejou: ele entrou em Isabel, queres tu dizer...Oh!! as palavras levam-nos a tantos enganos e ilusões. São apenas palavras. A amiga colocou a sua mão por cima do ombro de Helena. Olhou-a nos olhos. Sentiu-a deveras confusa. Sabia que ela gostava de Fernando e ainda guardava rancor por Mário. Não fizera o luto da relação antiga. Como seria ela feliz com Fernando quando estava ainda tão envolvida emocionalmente pelo outro? Temos que acreditar, efectivamente, mais nas acções do que nas palavras, sem dúvida. Mas, espero que te vás casar, não por aquilo que Fernando diz que faz mas por realmente ser quem é. Somos não só o que dizemos mas o que fazemos. O prémio Nobel da Paz não vai para os demagogos mascarados com um sorriso e para os bons pregadores do bem. O prémio vai para aqueles que ajudam o próximo, que contribuem para a defesa dos direitos humanos, enfim .... o bem tem de ser manifesto; um bem feito. Helena, mulher que aprecio pela sua inteligência emocional e suas defesas enfáticas, respondeu simplesmente: Bom ....eu acho que gosto do Fernando não só pelas suas qualidades, porque há muitos homens com qualidades apreciáveis. Eu vou casar-me com ele, mas não só por isso. Vou-me casar com ele porque considero que consigo conviver com os seus defeitos. São os defeitos que me fazem casar com ele.

Ainda hoje penso nesta conversa: escolher o companheiro de lençóis e de infortúnios com base nas suas diferenças, que se considera defeitos. De facto, ainda hoje eles estão casados. Deve ser este o segredo da durabilidade de um casamento: aceitar a diferença do outro e conviver bem com isso. Conhece-te, dá-te a conhecer, conhece o outro, convivam com as semelhanças e as diferenças, ou se preferires, as virtudes e desvirtudes um do outro. As virtudes comprazem a tua vida. As desvirtudes?, o que essas te fazem sentir?
(aguardem! Aguardem novos desenvolvimentos na história.)

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Deixem-me gritar: I'm Freeeee!!!!


(...)
Porque ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade.


(...)
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro do meu ser. (Fernando Pessoa)


Se Deus existisse, só haveria para ele um único meio de servir a liberdade humana: seria o de cessar de existir (Bakunin)

"... Sempre que uma grande e luminosa descoberta fornece benefícios aos mortais, facilitando e adoçando a vida, logo surgem os padres nos púlpitos, condenando-a como obra contra Deus e contra a fé de nossos pais.

(...)
Foi deste modo que perseguiram, sacrificaram e desonraram (quantos morreram cobertos de ignomínia e de miséria irresgatável!) Copérnico, que descobrira o movimento da Terra; Newton e La Place, que ensinaram o sistema do mundo; Franklin e Dawis, que abrigaram do raio e das explosões do grisu; Galvani e Volta, que revelaram as correntes eléctricas, hoje dominadoras do mundo; Wheratstone e Morse, que, por meio do telégrafo, fizeram voar o pensamento com a velocidade dum raio... Perseguiram Bacon e Descartes, ultrajaram Look e Espinosa. Le Bon, que iluminou as cidades a gás, foi obrigado a emigrar; Galileu, que nos legou o termómetro, a balança hidrostática e nos revelou o movimento da Terra, foi agarrado e torturado pelo dedo de Deus, nesse tempo ao serviço da Inquisição; Rousseau, que nos ensinou a arte de educar as crianças, foi um dos homens mais perseguido e mais repetidas vezes condenado pela igreja.


(...)
Que leia por exemplo, as páginas que tratam do ano mil. Ah! os falsos pavores dessa era terrível, que tantas desgraças e tão grande retrocesso social motivaram no mundo! Foi isso, como digo, no ano mil da nossa era. A igreja e com ela toda a cristandade, clamava que fizessem penitência, porque Deus ia dar fim ao mundo. Pois bem, Deus, que sabia tudo, Deus, que todos os dias falava com os seus padres, e estes que toda a hora recebiam, possuíam a Deus, nenhum disse a verdade às multidões. Deus consentiu que os homens deixassem de cultivar os campos, construir as casas, abrir estradas, educar a mocidade, amar e procriar, ordenando-lhes apenas que rezassem, chorassem e morressem de dor, esterilmente, como lobos famintos num deserto! E isto, durante anos e anos!

Muitos, para não assistirem à pavorosa e universal catástrofe, iam afogar-se nos rios, asfixiar-se nas adegas, abrasar-se nos fornos e, quantos, quantos, não foram sepultar-se vivos, em fundas valas e em negras cavidades subterrâneas! Tudo era desolação e morte, na expectativa , desse fim, E Deus viu tudo, Deus quis tudo, e a Igreja a tudo assistiu, como executora dos mandatos divinos.

Pois bem, todas essas lágrimas essas mortes, essas sepulturas vivas, esses ventres estéreis e, principalmente, esses irreparáveis retrocessos intelectuais, morais e económicos, tudo isso se teria evitado se Deus quisesse ser, por um instante que fosse, não digo já pai amantíssimo, mas simplesmente juiz consciencioso, alma de bom sentir e bom querer. Bastava que dissesse ao seu vigário na Terra uma palavra só; bastava um gesto, um aceno, e tudo se teria remediado e evitado. Mas não quis. E ate parecia ser ele o primeiro a sentir e a confessar o medo.

...Deus, que nos ouve e nos vê decerto nos aplaude, pois está-nos fazendo o mesmo que tem feito aos que na Terra se dizem seus representantes... Querem vocês saber como ele usa assistir aos concílios e outras reuniões da Igreja? Em qualquer dessas assembleias, a que o papa assiste muitas vezes e onde estão cardeais, patriarcas, bispos e padres, ergue-se de lá um, muito solene, muito grave e, dirigindo-se ao espirito invisível, ao mistério, exclama Se Deus aprova, que se deixe estar. Por conseguinte, se o vosso receio é que Deus não esteja satisfeito connosco, digamos nós também, como esses padres, ao começar este serão: - Se Deus não está contente connosco, se não aprova as nossas intenções e decisões que vão seguir-se, que faça o favor de se manifestar, erguendo-se, falando, exteriorizando-se, enfim. ...Como vêem, Deus conforma-se, aprova as nossas decisões."

De Tomás da Fonseca.

Professor e Escritor. Nasceu em 10 de Março de 1877 e morreu em Lisboa, a 12 de Fevereiro de 1968. Dezassete dos seus livros foram proibidos pela censura. Publicou em 1909: "SERMÕES DA MONTANHA".

quinta-feira, 26 de abril de 2007

retalhos do livro "memórias de uma velha maluca"

Livro a ser (re)construido há mais de 10 anos.
A história de vida da menina de rua cruza-se com a de Mário e com a de Isabel - casal que tenta procriar, sem nunca conseguir. Conheram-se através da irmã de Isabel, a Helena, namoradora de Mário. A história é narrada por uma velha, e conta a sua história de menina de rua, quando tinha 11 anos e que acabaria por ser adoptada pelo casal. Aos julgares de uma moral colectiva a velha era louca porque era diferente. Apresento-vos apenas alguns retalhos para aguçar a curiosidade.
Boa leitura!!
Prólogo
O mundo criou-me e deixou pouco espaço para mim, para as minhas escolhas, para as minhas afirmações. Pouco restou de mim!
Preparem-se! Sejam denodos! Sejam denodos o suficiente para ouvir esta minha história até ao fim. Preparem-se para conhecer uma saudosista despudorada (já sei que assim me irão considerar; já sei!! Também me preparei para vocês durante toda a vida).

Aviso-vos: se não quiserem ter o mesmo fim que eu contenham-se, reprimam-se. Vós não sois vós, sois o que os outros pensam e querem fazer pensar o que vós sois, mas que não o são. Mais: ainda antes de nasceres já te criaram, já te moldaram a índole, já te apresentaram a consciência universal.

Capítulo I
A sede do poder lança-me as migalhas e
A fome cala-me

A dor no corpo permanece-me cravada na minha memória. O desespero acompanhava-me neste sufoco. Ainda sinto o que sentia. Era a fome. Sentia-me uma morta a procurar pela vida, ou talvez uma viva a procurar a morte. A minha felicidade, na altura, restringia-se ao pão que me punha a trabalhar o estômago e dava-me energia para procurar mais pão - não é nesta parte da história que sou exagerada! Neste trecho da história estou a ser eufémica. Talvez o pão nos surgisse quando nos deixassem de dar as migalhas. A nossa procura pelas migalhas nunca fará com que o pão surja no nosso prato; só quando formos todos a partilhar as partes do pão por todos, por Direito Humano. As migalhas não nos calam a fome, mas calam as suas consciências e apaziguam a sua piedade que tanto os incomoda. Agem em solidariedade para se sentirem mais felizes. E nós ... nós só nos contentamos com o quase nada. Não temos força na voz para clamarmos a nossa dignidade e logo pensam que nós não temos dignidade.
Enfim, não me querendo alongar mais nesta parte da história, eu era uma menina da rua. Vivia das migalhas, acompanhada sempre pela fome. Tinha alguns conhecidos como o Pedro. Não sei se teria muitos amigos, porque o Homem quando em situações de sobrevivência partilhada une-se. E, esta união será amizade? Será que continuaríamos a ser amigos se nos acolhessem em casas diferentes? Na altura, não sabia a resposta. Mas o meu percurso de vida deu-me a resposta. São as respostas da experiência.
CAPÍTULO II
A vida de Mário e Isabel

1.Anseio de não procriar
A culpa ceifa a tranquilidade da mente e dilapida a partilha no leito matrimonial. A forma mais comum de fugir da culpa sentida é culpar o próximo. Então, lançam a provável hipótese de um deles ser o frustado e que algemou esta relação para a desgraça. Ambos refugiavam-se no confortante pensamento de que era o outro o incapaz. Receavam o confronto com a verdade. A verdade que os exames podiam oferecer, a verdade que grita que é o outro o são. Pelo julgar deste dilema, o problema só perdurava pela sua cobardia à verdade. Arrastaram a incógnita. A incógnita não só não era a solução como entumecia o receio à verdade e aniquilava a paz dos seus corações. Preferiam agir compulsivamente em incessantes tentativas. É uma escolha! Mas a escolha da fuga nunca pode ser uma boa escolha. Preferiam pensar será da próxima do que porem terminus à angustia da incógnita e terem a mais terrível certeza. Mas eles preferiam a angustia. Porquê esta angustia dilacerante? Porque permite ter esperança. O fim parecia-lhes longe. Sentiam-se infelizes, mas esperançosos de deixarem de o ser. A esperança por vezes enevoa o caminho e dificulta as escolhas. Muitas das vezes para encontrar o caminho de retoma para a vida real deve-se desfazer logo a esperança. Nem tudo é alcançável e há que deixar de ter esperanças de tal. Mas a felicidade é alcançável e essa é a única esperança que morre connosco. Para eles a sua felicidade era terem um filho, mas tal não era possível. Então teriam de encarar a realidade e pensarem em opções alternativas para redesenharem a sua concepção de felicidade. Para eles, de facto, a criação dependia das probabilidades: muitas tentativas num longo horizonte temporal fazem crescer as probabilidades.

5. o Coito
(Anuncio já aos leitores que esta secção é para maiores de 18 anos. Apesar de nunca ter entendido como se generaliza o despertar da sexualidade de cada um. Claro que o mundo depois está repleto de jovens pervertidos!! Rapidamente a sexualidade transpõe a linha ténue para a depravação, aos vossos julgares.)

Ela (Isabel) retomou com uma voz arrastada, aveludada: Fica por mim! Fica para mim!- Foram estas as suas frases. Fica por mim! Fica para mim! Tanto parecia um pedido lânguido como uma ordem surgida da audácia. A ambivalência do proferido atraiu-o (Máro) de súbito. Mirou-a! Olhou para aquela mulher como nunca se tinha atrevido a fazer e apreciou demorada e tranquilamente o seu corpo moldado coberto com uma leve camisa de dormir de cetim preto, rendada nos bordos das alças. As mamas saltavam do decote. Aprazido o seu desejo de a contemplar, sentiu o seu corpo invadido por uma sensação estranha: a estranheza da paixão ainda não aceite por si. Mas há momentos na vida que nos enevoam a razão, que nos enlaçam em estados inebriados, que nos lançam para vertiginosos feitos. Para descobrir tal mistério de um estado de espirito indefinido teria de se entregar à situação, render-se ao inesperado. A curiosidade de descobrir o outro, na sua intimidade sexual, impele os corpos para cima uns dos outros. É a necessidade de descobrir!, descobrir o corpo e o seu comportamento sexual: se o outro ondula, se estremece no clímax do prazer, se emite sons: gemidos, gritos, sussurros. Encontrava-se prostrado a olhar para ela. Os seus pensamentos flutuavam sobre o seu corpo. Esqueceu-se dos ponteiros do relógio. É daqueles momentos vividos com morosidade para ficarem retidos na memória, retardando o agir. Ela mantinha-se em pé e ele sentado. Era ela que pedia, era ela que estava a um nível superior, com a cintura acentuada denotando-se a larga anca, ao nível do olhar de Mário. Seria ele que iria satisfazer o pedido. Relembrou-se das suas frases mas reconfigurando-as conforme o seu desejo: Fica por mim! Fica para mim! Fica-te em mim! Fica-te dentro de mim! Surge-lhe uma vontade inesperada de a desnudar, um desejo sequioso de a possuir já ali no sofá. Os devaneios da tentação calavam o silêncio - outrora incomodativo, em que estavam mergulhados os corpos. Subitamente Isabel começou a bailar a anca e o roçar as suas pernas nas das dele. Ele imaginava que ia desvendando a sua nudez, levantando com um só gesto a camisa de dormir. Imaginava o talento de amante que ela teria. E imaginando sentiu-se. Sentiu palpitações, a respiração arfante, tremores nas mãos, o facies ruborizado. Sentiu a expansão do seu corpo já visível nas calças, preparado para a invadir. Viu-se assim vencido e agarrou-a pela cintura puxando o seu corpo para cima do dele. Dominado pelo desejo de descortinar o mistério que a envolvia viu-se a praticar acrobacias com Isabel. Rendidos à libido, os corpos estavam pela primeira vez entrelaçados, como iriam muitas vezes ficar. Após um momento de voluptuosidade, ambos entregues àquela lassitude recuperavam forças, partilhando um repouso. Mário contemplava aquela beleza, agora transpirada, com o mesmo olhar que iria ter muitas vezes. Olhou para o seu sorriso angelical, que se encontra facilmente nos humanos quando descansam. Estava ele ali deitado a namorar os seus lábios, reparando como o superior descansava levemente sobre o inferior. Quis sentir a sua existência entre os dedos, e aproveitou extasiar-se passando-lhe com o polegar pela boca húmida. Levantou descontraidamente o olhar para o tecto. Passou de relance o olhar pelo relógio da parede da sala. Como que acordando daquele estado de transe, viu nitidamente a imagem de Helena em frente do seu olhar. Abriu o sobrolho como se assim houvesse oportunidade de ver melhor ou de se certificar que a retina não o traíra. Mas foi uma aragem de pensamento que deixou-lhe como fardo o sentimento de culpa. De súbito sente o corpo algemado pela angústia. Levou as mãos à cabeça num gesto suave e penteou-se. A expressão do corpo aludia o estado da alma: confusa, embrulhada no processamento de tanta informação - informação da sua vida, da opção que acabara por tomar e que poderia toldar o futuro que planeara. A informação sensorial ficara porquanto abandonada. Uma opção!: uma divergência no caminho que levara. Uma opção! A sua mente muda, delatora sussurraria a Helena todos os pensamentos. Isabel ficou por instantes aturdida com suas cogitações, que poderiam ser deveras espinhosas para o planeado. Perante o eventual cenário dele a abandonar, ela sentiu-se impelida de redesenhar o seu plano estratégico, de forma eficiente. De chofre, Isabel ficou derramada em lágrimas, num estado lastimoso, apelativo para a compaixão de um humano. Andava pela sala, freneticamente, a vociferar entre soluços: e agora?! E agora?! Mário, apesar de sentir que já estava a arder no inferno, sentiu tumidez para com Isabel ao assumir o controlo da situação e reconfortou-a com as palavras calma e seus sinónimos. De súbito, ela estacou hirta mesmo frente a ele e perguntou de forma pausada: estás com medo, não estás? Diz-me! Estás não estás? Ele anuiu com a cabeça. E, ela iniciou a sua marcha nervosa, até que se deixou cair de joelhos junto à mesa e entre gemidos e soluços proferiu: meu Deus! O medo supera, asfixia qualquer outro sentimento. Por medo se morre. Por medo se mata. Por medo se abandona o amor. Por medo podes-me abandonar. Por medo podes-me matar: sem ti eu morro. Sem ti eu morro! Ouves-me!!: sem ti eu morro. Oh Deus! Aquela mulher que vigorava sobre si à pouco nutrida por uma intrepidez invejável aparecia-lhe naquele instante frágil, ao ponto de dizer que morreria sem ele. Sentia-se enobrecido por ela lhe conferir o dom de protecção e pertença. Agarrou-a na nuca e beijou-a. O intimo de Isabel rebolava de tanta regozijo. Mais uma vez ela indicava o caminho que queria que Mário seguisse e ele fazia-lhe a vontade. Enlevava o seu ego até junto aos ceús e ele respondia aos desejos dela. A cena de amor terminou e já quando ele transpunha a porta de entrada ela declarou Mário, meu homem, a salvação para este mal a que o prazer nos jogou é pedirmos perdão à vitima mais crucificada. Mário volveu-lhe, assombrado pela ideia: não faças isso! Será a desgraça para os três. Deixa-me ir para casa pensar ... reflectir. É isso: preciso de reflectir. Entrámos pelas portas do pecado sem pensar e perdemo-nos. Agora para nos encontramos neste labirinto a que nos largámos temos de pensar no melhor caminho para sair pelas mesmas portas. Sabes que já namoro a tua irmã à seis meses e namorei-te em menos de seis horas. No entanto não sei se estou ludibriado por este enredo que extasiaram os meus sentidos e sentires, mas acho que estou deveras mais apaixonado por ti. Engoliu em seco e pensou: sinto-me deveras mais apaixonado por ti, pelo teu corpo e sua pujança. E saiu.

Isabel narrou tudo a Helena quando ela chegou. A traída disse a Mário que estava desiludida e magoada – uma magoa que cegava a identidade da pessoa de Mário que ela conhecia. Interrogou-se se realmente o conhecia e se merecia ser conhecido. A confiança fora perdida e portanto a relação também.
Mário continuou a telefonar a Helena dizendo que não a queria perder mas simultaneamente visitava Isabel, a tirar partido das suas constantes e misteriosas dualidades que erguiam a sua verga. Tanto entregava-se à escravatura do amor como intumescia-se perante os comentários astutos duma mulher sabida na vida. Tanto aliciava a sua desenvoltura quando se encavalitava nele, puxava os seus cabelos e lhe dava ordens, como se admirava quando ela se deitava no seu colo e lagrimejava pela traição passada, motivo da ruptura da relação da irmã com ele. Apaixonou-se por Isabel e deixou progressivamente de pensar na irmã.

7. Sempre me encontro aqui

Passei por tantos dias infaustos enquanto filha da rua, mas quando deixei de o ser, o cruel fado enterrou-me viva, pregando-me uma impiedosa partida. Esperava que as recordações da paixão viessem a jazer sepultadas na minha mente, mas ainda hoje as guardo. Julgo que ficaram ancoradas à minha memória para sempre.

Saio da janela. Dirijo-me para o espelho e vejo a marca da idade junto à boca e aos olhos. Envelheci. Mas a dor que ficou manteve-me o espirito agarrado à minha juventude. Envelheci entre estas quatro paredes parada no tempo, com o passado a rever-se à minha frente. Vejo-o tão nitidamente. É o meu presente. E só deixará de o ser quando entregar o meu corpo à terra e deixar necrosar a alma juntamente com ele.

Eu agora preocupo-me com as inquietações de cada um de outrora. Preocupo-me por tomar a todas as horas os comprimidos que me acalmam os anseios. São as preocupações que me definham, contudo são estas quem me mantém viva. Se não vivesse o passado só poderia viver um sonho, porque o presente não. O presente são comprimidos. O presente é a clausura destas quatro paredes.

Não me preocupo com as rugas, pois são aquelas que me fazem lembrar todas as manhãs que sou uma privilegiada por me aperceber pela passagem do tempo. Apreciar a passagem do tempo é um apanágio conferido aos viventes. As rugas são um dos poucos motivos de felicidade que comemoro todas as manhãs.

7. A propósito de liberdade


Permitam-me um desvio da minha história, mas esta só faz sentido se me conhecerem. Para me conhecerem deverão ouvir-me. Odeiem-me só depois de me conhecerem; conhecerem-me tal e qual como sou e não como gostariam que fosse.


A propósito de culpados! Reflicto agora sobre culpados. Temos sempre que atribuir culpa. Porque perdemos tempo? Para evitar que se volte a repetir? Resguardamo-nos por detrás da culpa. Alivia-nos a culpa do outro! A culpa sendo do outro é um bálsamo para o fardo das consciências já encarceradas pelo juízo social. Para além disso, usufruir do mesmo recurso de Deus é supremo: castigar. Castigo! Como podem os crentes ser livres?! Como pode Deus ter criado o Homem, que sempre lutou pela liberdade, que trouxe tantas carnificinas que ensanguentaram a história em nome da religião, em nome do Supremo? Como podem ser livres quando têm receio sempre de serem punidos pelo que fizeram. Onde está a liberdade de acção? Porque castiga Ele? Decerto que é astuto, porque oferece como castigo a pena do incógnito; a impossibilidade de confirmar o terrível do inferno. Porque criou ele, como castigo aos vivos, o desconhecido? - o pior dos castigos!


Quero deixar já explicito um facto que dadas outras circunstancias seria um pormenor mas dada a esta situação que se avizinhará será um escândalo. Para mim escandaloso são os vossos preconceitos que não o tornam um pormenor. Os pormenores em diferentes contextos fazem a diferença, e de pormenores se passa para o extremo de magnânima importância. Este pormenor de que vos vou segredar, aliás, posso mesmo gritar – quero lá saber! Nunca quis! – fere apenas a moral colectiva deles – viram como vos protejo referindo-me a vós como sendo eles – é por isto que adoro o poder da língua, das suas figuras de retórica, de pensamento, dos seus subterfúgios, dos eufemismos, da ironia, das hipálages, dos paradoxos. Muitos podem dizer que as atitudes dos outros desde que não incomodem não se devem julgar, mas o meu caso era diferente porque incomodava. Incomodava porque assumiu a diferença. Os vossos preconceitos também me incomodam. Nunca quis deveras entrar na esfera do servilismo, sofrer a tirania social sobre as minhas condutas. Dei-me a conhecer, tentei ilusoriamente viver livre assumindo a minha identidade, mas a verdade é que nunca fui nem serei livre. Porquê? Porque ninguém o é! Só serei livre quando formos todos igualmente livres, livres de escolhas, de vontades, de iniciativas. Nunca serei livre dentro desta sociedade encapsulada de forma quase hermética. Consideram de facto que somos todos diferentes aceites pela sua unicidade de direito à diferença? Já na Inquisição se lançava à fogueira a diferença, exaltava-se os preconceitos pela diferença, erguia-se os filhos nos braços para apreciarem e se regozijarem com a agonia e a justiça que estava ser feita. Se se luta, escraviza, hostiliza, mata pela diferença porque a criou Ele então? Porque não criou Ele clones?


O pormenor que vos quero anunciar era a minha idade. Tinha 11 anos e era menstruada. É de facto uma banalidade para a história, parece. Mas as aparências são subjugadas às conjunturas; o que parece hoje e aqui não é o mesmo que amanhã noutro cenário.


(......) e o resto fica para lerem daqui uns anos.

5 da manha


São 5 da manha. Consumida pelo cansaço em que me encontro... ou melhor já não me encontro. Perdida num vago encontro de caos. Sobra-me o sentido pendurado na vertigem da alucinação. Estou em pé. Junto à janela. Afasto as cortinas. Não gosto do que vejo. E deixo-me cair. TOMBO! E não me levanto! Fico deitada. A perspectiva do nada transforma-se. Passo a vislumbrar tudo que se verga ao meu olhar, num plano totalmente subjagado aos meus pés. A estranheza do meu estado taz gargalhadas mergulhadas em mim. Só eu as oiço. Aprecio o momento...e parece que para ver melhor tenho de fechar as vistas ao mundo e ao de leve passo a lingua pelos lábios inferiores. Vejo o que quero ver. Tenho a imaginação tal e qual como a quero...aos meus pés, longe da realidade, lá longe, fora da janela. Imagino que tu estás junto a um corpo. A minha consciência impede-me de discernir de quem é o corpo. O corpo encontra-se envolto numa névoa que retira todo o seu perfil. Nem o semblante vejo. Nada! Queria acreditar que seria o meu... mas a verdade, é que ... a realidade encontra-se bem longe mas eu estou aqui. O eu consciente não larga o subconsciente. De que me interessa estar longe de todos, se tenho o maior acusatório nesta sala: EU!! Porra. Nem sequer consigo ver o que quero.

tempo que deixei restar


Iniciei-me. O regozijo da descoberta arrasta-me nas veias a adrenalina que me desencadeia a taquicardia que me faz sentir. Sentir-me!!
Penso no tempo! O tempo que me resta! O tempo que deixo restar!
Salta-me na voz o silêncio que se repete...em eco que vai murchando com o tempo.
O tempo sempre me incomoda a vontade de controlo. Saber que vivo para um dia morrer traz-me um sorriso nos lábios, mas o tempo que me auferiram à nascença rasga-me o sentido de sonhar. Cabrão do tempo! As rugas na mente trazem-me a loucura, já sentida, que será bem vinda à aceitação da morte.
O tempo foge fronte à minha retina e semicerro as pálpebras e vejo o nascimento dos actos. Se tudo entendesse que se passa dentro de mim, seria um tédio de pessoa...nenhuma. Deixo o tempo roçar as minhas vontades de viver, sem força de vontade de agarrar o agarrável. Porra! Não vale de nada a vontade quando não há oportunidade.... e o tempo sempre a lembrar-me quão inutil é um sorriso do nada, quando tudo se escorrega aos meus pés num ápice de uns anos.
Sinto a estranheza de uma vida que por vezes não sei de quem pertence. Não saber quem sou, são indagações que me imponho pelo pouco tempo que me resta e que sempre, de facto, deixei restar.