domingo, 29 de abril de 2007

Só (e é só)


Retalhos do livro "Memórias de uma velha maluca"

Continuemos então a história de Memórias de uma velha maluca. Este trecho passa-se depois da traição entre Mário e Isabel. Passam-se uns anos (e saltam-se uns capitulos) e Helena casa-se. Recordo que quem conta a história é a velha, que, aos julgares de muitos, é maluca. Encontra-se fechada numa clinica psiquiatrica.


Naqueles tempos, Isabel nunca esteve apaixonada. Quem disser que, naqueles tempos, Isabel se apaixonou está de olhos vendados para o seu íntimo. Temos de saber amar-nos para saber amar o próximo. Pode-se julgar, ignorante e precipitadamente, que ela só se amava e a mais ninguém. Mas temos que nos inteirar mais além: ela não conseguia amar ninguém porque a sua alma era consumida por uma raiva que intumescia e acabava por sufocar todos os outros sentimentos. Ela não sabia, porque não conhecia a verdade do seu ser, mas a raiva que cuspia nas poucas palavras que proferia não eram dirigidas à sua irmã, mas para si mesma, por não ter conseguido arrebatar os ânimos daquele homem. Revelo-vos já, porque não consigo controlar a minha voz: Isabel, em eras mais avançadas, enquanto procurava a felicidade olhou para o seu âmago e quando deu por si estava apaixonada. Apaixonada!, mas não por Mário.

4. Nas vésperas do casamento de Helena

Helena fora traída, ouvira ela da boca da cúmplice da traição. Não suportava. De facto, não suportava tamanho indicio da infelicidade dos seus restantes dias partilhados com um homem que cedera tão facilmente à tentação. Ela acreditava que era mais do que a possibilidade de ser o início de muitas traições mas o presságio oferecido pelo destino, como aceno de sua amizade. Largara-o à desventura. Mas ele só ficou entregue àquela sorte funesta, na agonia do abandono nos primeiros dias, porque ele acabaria por se afundar numa paixão arrebatadora por Isabel.

Helena acreditava que um amor entrega-se ao esquecimento quando a memória está preenchida pela feição de outro homem, trazendo os sentidos renascidos. Procurou e encontrou. Estava noiva de Fernando. Guardo como recordação as suas palavras que proferiu a uma sua amiga, nas vésperas do casamento. Palavras de indignação porque Mário inicialmente telefonava a pedir desculpas e depois deixou de dizer o que quer que fosse. O silêncio dele era sinónimo de esquecimento. A amiga ripostou: ... mas tu vais-te casar com outro. Já não o esqueceste?! Disseste-me que já não gostavas dele; que estavas perdidamente perdida de amores pelo Fernando. Querias que ele continuasse atrás de ti, para quê? Para insuflar o teu ego? Para quê? Seguiste a tua vida e ele a dele. Tu sabes que não serias jamais feliz com ele. Deixaste-o como prenda para quem o aceitasse e quem o fez foi a tua irmã. Isabel respondeu com a voz arrastada, contendo o choro: mas foi por ela que eu o deixei. E, com ela ele ficou. Ohh pá! Não! É que não se pode confiar na palavra amor soletrada por um homem que nos agarra e geme aos nossos ouvidos. Porque é apenas uma palavra. Porque haveria de ser sentida? Sentia orgasmos, mas não sentia o que dizia. Rapidamente esqueceu-me. Grande amor o dele! Fez-se um breve silêncio. Tu também o amaste e não vais casar com outro? Querias que o amor dele por ti fosse duradoiro? Ele para encontrar a felicidade teve de a procurar onde o deixaram entrar. Ele quis voltar para ti e tu recusaste. Então, ele entrou na vida de Isabel. Helena com facies irada esbravejou: ele entrou em Isabel, queres tu dizer...Oh!! as palavras levam-nos a tantos enganos e ilusões. São apenas palavras. A amiga colocou a sua mão por cima do ombro de Helena. Olhou-a nos olhos. Sentiu-a deveras confusa. Sabia que ela gostava de Fernando e ainda guardava rancor por Mário. Não fizera o luto da relação antiga. Como seria ela feliz com Fernando quando estava ainda tão envolvida emocionalmente pelo outro? Temos que acreditar, efectivamente, mais nas acções do que nas palavras, sem dúvida. Mas, espero que te vás casar, não por aquilo que Fernando diz que faz mas por realmente ser quem é. Somos não só o que dizemos mas o que fazemos. O prémio Nobel da Paz não vai para os demagogos mascarados com um sorriso e para os bons pregadores do bem. O prémio vai para aqueles que ajudam o próximo, que contribuem para a defesa dos direitos humanos, enfim .... o bem tem de ser manifesto; um bem feito. Helena, mulher que aprecio pela sua inteligência emocional e suas defesas enfáticas, respondeu simplesmente: Bom ....eu acho que gosto do Fernando não só pelas suas qualidades, porque há muitos homens com qualidades apreciáveis. Eu vou casar-me com ele, mas não só por isso. Vou-me casar com ele porque considero que consigo conviver com os seus defeitos. São os defeitos que me fazem casar com ele.

Ainda hoje penso nesta conversa: escolher o companheiro de lençóis e de infortúnios com base nas suas diferenças, que se considera defeitos. De facto, ainda hoje eles estão casados. Deve ser este o segredo da durabilidade de um casamento: aceitar a diferença do outro e conviver bem com isso. Conhece-te, dá-te a conhecer, conhece o outro, convivam com as semelhanças e as diferenças, ou se preferires, as virtudes e desvirtudes um do outro. As virtudes comprazem a tua vida. As desvirtudes?, o que essas te fazem sentir?
(aguardem! Aguardem novos desenvolvimentos na história.)