segunda-feira, 10 de março de 2008

Memórias de uma velha maluca (continuação...numa retrospectiva)

3. Os silêncios

Isabel casara-se com Mário por ser mais um capricho seu: prometera à irmã, que lhe roubaria o seu namorado após um arrufo qualquer, que nunca soube ao certo as suas circunstâncias e justificativas. Isabel era alta, atraente, com olhos azuis cristalinos, com nariz delgado, com uma brancura que contrastava quando embrulhada no corpo moreno de Mário.

Isabel conheceu-o quando este ia buscar Helena a casa. Pontual, tocava à campainha sempre às 17 horas. Ela passou a adornar-se demoradamente, aperaltando-se ao espelho, dando os últimos retoques na maquilhagem que realçava o azul dos seus olhos. Ela dizia à irmã: não te preocupes! Vai-te despachando, que eu vou abrir-lhe a porta. Está descansada! Transpunham os dois a porta que dava para a sala. Silenciosos. Nos primeiros dias não tinham tema de conversa. O silêncio era perturbador, constrangedor. Ele só olhava para o relógio de pulso. Um gesto trivial pode remeter emoções fortes e trazer à mente de uma mulher várias indagações, reveladoras da sua ambivalência emotiva: será que está farto de mim? Será que sou um tédio de pessoa? Será que está a desejar que Helena nunca mais desça, para estar na minha presença? Depois a Helena aparecia e saíam, sem sequer se despedirem dela. E ali ficava ela, à janela, a vê-los a desaparecer de mãos dadas, para a mata que havia em frente da casa.

Sabia que ambos viriam envolvidos numa cumplicidade, com os rostos figurados de cansaço, mergulhados no silêncio, o que fazia despertar a imaginação de Isabel. O silêncio entre ambos, pensava ela, assumia uma significação totalmente diferente entre ela e Mário. O silêncio entre eles era o som do amor; representava o celebrar a memória de todos os sentidos comprazidos. Quanta inveja sentia! A inveja confundia-a com paixão. Por vezes, há uma linha ténue entre os sentimentos mais possantes quando as pessoas não se conhecem, porque o auto-conhecimento e sua aceitação assusta. Isabel, desenvolvera, nesses tempos, um silêncio, como demonstra do seu rancor engolido nas entranhas da sua maldade. Um silêncio para ouvir o eco do seu sofrer. Uma alma preenchida por raiva para com as gentes diferentes da sua ruim índole. Mas o seu caracter foi-se moldando, precisamente por ter optado por uma vida que fora injuriada pela diferença.

Naqueles tempos, Isabel nunca esteve apaixonada. Quem disser que, naqueles tempos, Isabel se apaixonou está de olhos vendados para o seu íntimo. Temos de saber amar-nos para saber amar o próximo. Pode-se julgar, ignorante e precipitadamente, que ela só se amava e a mais ninguém. Mas temos que nos inteirar mais além: ela não conseguia amar ninguém porque a sua alma era consumida por uma raiva que intumescia e acabava por sufocar todos os outros sentimentos. Ela não sabia, porque não conhecia a verdade do seu ser, mas a raiva que cuspia nas poucas palavras que proferia não eram dirigidas para sua irmã, mas para si mesma, por não ter conseguido arrebatar os ânimos daquele homem. Revelo-vos já, porque não consigo controlar a minha voz: Isabel, em eras mais avançadas, quando procurava a felicidade olhou para o seu âmago e quando deu por si estava apaixonada. Apaixonada!, mas não por Mário.